Interpretar é reconhecer-se no outro: o conceito davidsoniano de interpretação radical
Este artigo pretende apresentar o conceito de interpretação radical desenvolvido por Donald
Davidson. Tal conceito relaciona pensamento, linguagem e mundo, de modo a considerar que
só a comunicação pode proporcionar o conceito, sendo o diálogo o contexto real de toda e
qualquer objetividade. Para Davidson, não há significação sem interpretação e sem compre-
ensão. Nós só interpretamos à medida que reconhecemos no outro as nossas próprias normas
de consistência lógica, à medida que reconhecemos o outro como racional e coerente. Palavras-chave: Donald Davidson; Interpretação Radical; Princípio de Caridade. RÉSUMÉ
Cet article vise à montrer le concept d’interprétation radicale développé pour Donald Davi-
dson. Ce concept identifie la relation entre la pensée, le langage et le monde, où seule la
communication peut fournir le concept, et le dialogue est le contexte réel de toute objectivité.
Pour Davidson, il n’y a pas de signification sans interprétation et sans compréhension. Nous
arrivons vraiment à interpréter quand nous reconnaissonsdans l’autre nos propres normes
de consistance logique, quand nous reconnaissons l’autre comme rationnel et cohérent. Mots-clés: Donald Davidson; Interprétation radicale; Principe de Charité.
* Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia da UFPI. Introdução
contexto social de interlocução. A partilha
do mundo e o acordo entre os falantes é o
que possibilita a existência de condições
Davidson e o conceito de
toma a linguagem como um problema filosó-
interpretação radical
fico foi aberto pelo diálogo platônico Crátilo.
Crátilo e Sócrates confrontam as teses natu-
gos, publicados sobretudo em revistas espe-
ralista e convencionalista acerca da lingua-
cializadas e anais de congressos, Davidson
gem, discutem sobre a origem e a justeza dos
construiu um programa filosófico completo,
nomes e se dispõem a analisar as relações
onde são desenvolvidas questões sobre a
entre o conhecimento, as palavras e a verda-
linguagem, a relação mente-corpo e a teoria
de. A posição mais incisiva será a adotada
da ação. Entre outros feitos, ele revitalizou
por Crátilo que, na defesa do naturalismo,
o conteúdo da filosofia da linguagem ao
argumenta: “Sou do parecer, Sócrates, que
acrescentar-lhe o caráter social do pensa-
os nomes instruem, sendo-nos lícito afirmar
mento, situando-o numa relação triangular
com toda simplicidade que quem conhece as
palavras conhece também as coisas.” (435d,
e). No final do diálogo, amparando-se na
ambigüidade e na polissemia das palavras
Rorty, Davidson afasta-se do “puritanismo
e dos nomes, Sócrates aconselha Crátilo a
filosófico.”1 De modo geral, ele refuta noções
procurar alguma coisa que faça ver, sem as
filiadas ao platonismo, não por creditá-las
palavras e fora dos nomes, a verdade das
como “erradas” ou “inconsistentes”, mas
coisas: “não é por meio de seus nomes que
simplesmente porque não há muito a dizer
sobre elas: “não há modo de ‘naturalizá-las’
coisas, mas de preferência, por meio delas
ou conectá-las de algum outro modo ao res-
tante da inquirição, ou da cultura, ou da vida.”
(RORTY, 1994, p.308). Para Davidson, as ca-
filosofia, as teses contidas no diálogo Crátilo
pacidades de usar uma linguagem, de pensar
parecem ter firmado inapelavelmente a pos-
ou agir se desenvolvem conjuntamente e de
sibilidade de, por meio da tematização do uso
modo gradual. Não há como hierarquizar
geral da linguagem e mais especificamente
do uso das palavras e dos nomes, podermos
cação lingüística, onde o agir e o conversar
são analisados através de uma perspectiva
tos desse debate, o filósofo norte-americano
holística. Nele, o mais importante é buscar
compreender as linguagens naturais (todo o
ça inovadora, ele salta o entorno platônico e
conjunto de signos que têm ou já tiveram uso
encontra pontos novos, rejeita a idéia de que
efetivo), questionando em que condições de
significações e de verdade desenvolvemos
mento, e não acredita que exista qualquer
os conceitos e capacidades que temos para
gem. Para ele, linguagem, conhecimento e
pensamento só podem existir dentro de um
Davidson não se fecha em um sistema, é
1 Rorty (1994) chama de “puritanismo filosófico” as teorias que afirmam como suspeita qualquer coisa incapaz de ser “logicamente
construída” a partir de certezas. Segundo ele, a defesa do conhecimento a priori do significado é um modo de conservar essa forma de puritanismo.
muito extenso para isso. As suas conjecturas
audaciosas tornam-se tanto problemáticas
radical, Davidson defende que duas mentes,
como também estimulantes: “ele pode as-
ao partilharem o mesmo contexto, compartil-
sim escapar a todas as etiquetas: realista,
nominalista, reducionista, não- reducioni-
sta, construindo uma teoria do significado
mesmas teorias de interpretação funcionam
por subtração, cujo eixo é a racionalidade.”
para eles. O mental é ligado à ação lingüís-
tica, sendo que a intersubjetividade aparece
dessa autora, o grande insight davidsoniano
está na ligação dos enunciados ao pen-
do mundo objetivo. A interpretação radical
samento, aos outros e a nós mesmos. E essa
ligação não cabe em categorizações fáceis,
coerência significativa, onde crença, desejo,
de modo que filosofia de Davidson não é uma
verdade, mundo, minha mente e a dos outros
solução para os problemas da linguagem:
estão conectados na ação lingüística. Na in-
“ela mesma é um problema e encerra muitos
terpretação das intenções de um agente, as
suas crenças e as suas palavras são partes
de um projeto único, nenhuma parte pode ser
davidsoniana, o conceito mais central é o de
assumida como completa sem que o resto o
interpretação radical. Para Davidson, não há
seja. A interpretação radical tem um sentido
qualquer significação sem interpretação e
toda compreensão envolve uma interpretação
radical. A interpretação é um processo cole-
tivo, só existe dentro de uma comunidade de
intérpretes, e é o modo mais razoável de se
ficado mantendo tanto quanto possível a
O conceito de interpretação radical não
que diz respeito ao significado [.] o de-
tem vinculação metafísica. Considera que é
somente pelo caráter social do pensamento e
são inteligíveis contra um fundo de acor-
da linguagem que as pessoas, à medida que
alcançar o entendimento entre si, mesmo
através de um meio de interpretação ou
diante de toda a falibilidade e confusão que
possa ter uma comunicação. Na explicação
quer concordemos ou não com elas. (DAVIDSON, 1991, p. 207).
Na elaboração de seu conceito de inter-
Com essa teoria, Davidson coloca a inter-
pretação, Davidson é bastante claro quanto
pretação tendo por finalidade o acordo, não somente o acordo possível, mas o
às apropriações que fez das teorias de Quine
e de Tarski. Partindo do conceito quineano de
da própria interpretação. Desse modo,
“tradução radical” 2, Davidson rejeita a noção
de significado como entidade abstrata e de-
fende que, assim como não se pode chegar
interpretá-la em outro. Assim, a comuni-
a uma tradução correta exclusiva, não se
pode determinar um significado único para
a validade de uma interpretação. Existe uma
indeterminação do significado em função
2 Para desenvolver o conceito de interpretação radical, Quine elabora uma espécie de experimento filosófico. Coloca um lingüista-antropólogo em um trabalho de campo tentando traduzir para o seu próprio idioma uma língua inteiramente estranha à sua. O sucesso da experiência-tradução vai ocorrer quando for abandonada a hipótese de se encontrar o significado universal ou o significado das coisas através da ostensão, concluindo-se que não é possível uma tradução única ou definitiva. A tradução correta será sempre aquela que corresponde a acordos entre os falantes da língua estrangeira e os da língua do lingüista-antropólogo.
da própria indeterminação da tradução.
é chamada de Princípio de Caridade. Fun-
Entretanto, mesmo com toda a indetermina-
ção, nós podemos apostar no entendimento
interpretação radical, o principio de caridade
mútuo, pois se há comunicação há sempre
baseia-se no argumento de que a existência
naturais, Davidson utiliza a teoria da verdade
outras pessoas como razoáveis também. A
de Tarski3, propõe a substituição do tradicio-
interpretação só é possível se encontrarmos,
nal esquema lógico-sentencial “s significa
no outro, conteúdos de palavras e de pen-
p” por sentenças-T do tipo “s é verdadeira
samentos com os quais nos identificamos.
se e somente se p”. Com isso, ele consegue
A interpretação seria impossível se contás-
formalizar uma teoria semântica que não é
semos apenas com a pressuposição de que
uma reunião de análises dos significados
dos termos individuais, mas antes uma com-
preensão das relações inferenciais entre as
interpretar as elocuções e outro compor-tamento de uma criatura como revelando
Ao invés de associar o significado de s
ao significado de p, a teoria associa s às
próprios padrões, não temos razão para
Essa estratégia pretende evitar as aporias
construir uma teoria de compreensão das
guma coisa. (DAVIDSON, 1991, p.207).
expressões lingüísticas de L à luz de uma teoria da verdade de L [.] O significado
de uma sentença s em uma linguagem L é
fixado através de um teorema de verdade
enfática explicação de Sparano (2003, p.
da forma “s é verdadeira se e somente se p”. Com a idéia da centralidade do
significado, Davidson crê ser fiel a uma
giosa que impõe regras de ação para com
das teses básicas da semântica de Frege
os outros. Em Davidson, caridade especifica
e Wittgenstein: conhecer o significado de
algumas condições necessárias para dar sen-
uma sentença é conhecer as condições
tido àquilo que entendemos, observamos e
sob as quais essa sentença é verdadeira.
interpretamos das elocuções de outros falan-
tes, condições essas constituídas de crença,
Interpretação Radical e o
acordos e a própria comunicação. Segundo
Princípio da Caridade
Davidson, a relação entre os falantes desen-
volve-se em função de uma “maximização”
de ajustes, o que em nada significa a ausên-
interpretar os outros se considerarmos que
eles têm razão. A nossa comunicação se faz
sempre no sentido de tornar o outro o mais
inteligível possível, pois só assim podemos
interpretá-lo. Esta condição de necessário
que as frases são infinitas em número,
reconhecimento da racionalidade do outro
3 A definição de verdade de Tarski é a “convenção T”: “Uma frase verdadeira é uma frase que exprime que as coisas são assim e as coi-sas são efetivamente como ela assim o diz” (TARSKI apud SPARANO, 2003, p. 147). O que resultou na dedução formal: “s é verdadeiro, se e somente se p”, onde s corresponde à descrição da frase e p à proposição. Através das sentenças-T, associa-se s às condições de verdade descritas em p, o que é ilustrado pela clássica frase tarskiana: “A neve é branca”, se e somente se a neve é branca.
comece a tomar forma faz sentido aceitar
caritativa, devemos priorizar a verdade diante
o erro inteligível e levar em conta a pro-
do significado. Numa interação lingüística,
babilidade relativa de várias espécies de
verdade é sempre verdade partilhada, de-
equívocos. (DAVIDSON, 1991, p. 206).
pende do acordo entre os falantes, que tor-
nam verdadeira uma crença à medida que
Os ajustes caritativos são as condições
a compartilham. A verdade é a condição de
para a existência de uma linguagem ou co-
inteligibilidade, de possibilidade mesma da
municação. Eles são feitos holisticamente:
mente, mundo e ação se encadeiam. Nós só
podemos encontrar sentido naquilo que os
pende da forma como as crenças ajustam-se
outros nos dizem quando acreditamos que o
entre si. O significado não está num lugar
que eles dizem faz sentido, e também quando
platônico, não tem referência ideal ou estável,
partilhamos com eles uma condição comum.
nunca é intrínseco, encontra-se na relação
ativa entre interlocutores que dividem uma
circunstância. Ele é resultado da ação entre os
falantes. Contando com essa perspectiva,
Davidson, linguagem e interpretação existem
sempre em função de uma relação tríplice
entre a nossa participação, a dos outros e a
alinhar os signos nas relações corretas com os não-signos. Pois também deixa-
triangulação. Não se pode falar de al-
com as árvores, as mesas, as estrelas, a
de um propósito particular. (RORTY, 1993,
as coisas externas. É o que permite às coi-sas estarem situadas num mundo objetivo
Conclusão
compartilhado. É este fundamento que alimenta o conceito de verdade objetiva.
aquilo que as palavras do falante significam
intersubjetividade, que é somente a inter-
no momento em que são usadas. Por isso, os
subjetividade que alimenta o standard, a
valores de verdade estão preferencialmente
medida, a luz através da qual se pode ver a diferença entre o que as coisas parecem
vinculados às enunciações particulares,
não existem enunciações gerais capazes de
indicar uma referência que independa do
contexto em que se compõem as relações
caridade possui um conteúdo prescritivo que
Umberto Eco de que entre a intenção do
merece ser aplicado: devemos interpretar
autor e a intenção do intérprete, existe uma
terceira possibilidade, existe a intenção do
entre as nossas crenças e as daqueles que
texto, encontra em Davidson uma paráfrase
interpretamos. A interpretação radical deve
de extensão: entre as crenças do falante e a
não só maximizar o acordo, mas também
perspectiva do intérprete, existe uma terceira
otimizá-lo, de modo que os falantes se enten-
coisa, existe o contexto de uma realidade
dam cada vez mais. A compreensão entre os
compartilhada. Sugerindo essa proximidade
interlocutores é a grande medida de quali-
possível, ao interpretar O pêndulo de Foucault,
dade da interpretação, é a demonstração de
Rorty deixa entender que a consideração de
Eco, mesmo restrita ao campo dos signos,
na racionalidade do outro. Pela abordagem
tem uma direção davidsoniana, holística. O
que é bem ilustrado pela ironia da fala de um
que reconhecemos normas de consistência
lógica no outro. Nossas crenças e proposições
encontram objetividade não por estar refer-
casca provoca arrepios que vão da língua
são verdadeiras ou falsas na conversa que
à virilha. Os dinossauros pastaram aqui
temos com os outros. A relação entre as pes-
um dia. Depois outra superfície cobriu a
soas sempre passa pela interpretação, a ação
humana é sempre uma ação interpretativa.
está na nossa relação com o próprio mundo
dinossauros e os pêssegos. (ECO apud RORTY, 1993, p. 107). Referências Bibliográficas
por Davidson nos possibilita compreender
ARRUDA, José Maria. Verdade, interpreta-
que o pensamento só é possível dentro de
ção e objetividade em Donald Davidson.
um espaço social de interlocução. A inter-
Veritas. v. 50. n. 1, Porto Alegre, mar., 2005,
subjetividade é o único Plano. A invenção
é sempre feita em função de acordos e de
DAVIDSON, Donald. Interpretação. In: CAR-
ajustes. Nós só podemos inventar sentido
RIlHO, Manuel Maria. (Org). Dicionário do
para as coisas do mundo junto com os outros.
pensamento contemporâneo. . lisboa: Pub-
Compreender um Reino é compartilhá-lo.
Por isso, o solipsista não tem um mundo,
uma existência real, uma compreensão. Em
PlATÃO. Crátilo. Tradução Carlos Alberto
termos de inteligibilidade, uma primeira pes-
Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará,
soa só existe na presença de uma segunda e
RORTY, Richard. A trajetória do pragmatista.
existe — a possibilidade do pensamento vem
In: ECO, Umberto (Org). Interpretação e su-perinterpretação. . Tradução MF. São Paulo:
conceito de interpretação radical tem um
traço humanista. Com ele, entende-se que
_____. Richard. A filosofia e o espelho da na-tureza. Tradução Antônio Trânsito. 2. ed. Rio
teligível é também capaz de compreender
o outro. Acredita-se mais na razoabilidade
SPARANO, Maria Cristina. Linguagem e
da convivência humana, pois nós só faze-
significado: o projeto filosófico de Donald
mos uso efetivo de nossa razão à medida
Davidson. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
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