Rsp44_1.indb

Vera Regina da Silva Miguelote
Indústria do conhecimento:
Kenneth Rochel de Camargo Jr.
uma poderosa engrenagem
Knowledge industry: a
powerful mechanism

O artigo aborda a articulação da indústria farmacêutica à indústria do conhecimento, por meio de poderosas estratégias de marketing. Com o objetivo de legitimar cientifi camente seus produtos, a indústria interfere na produção de conhecimento médico. Confi gurando uma engrenagem de direcionamento de interesses econômicos, fi nancia pesquisas na área de medicamentos, enviesa seus resultados e incentiva a produção e publicação de artigos científi cos. Trata-se de uma engrenagem que ameaça importantes aspectos éticos: transforma o processo de legitimação científi ca em estratégia de marketing, compromete a credibilidade do processo de construção do conhecimento médico e incentiva distorções nos critérios de avaliação de qualidade dos artigos científi cos.
DESCRITORES: Indústria Farmacêutica. Pesquisa Biomédica.
Publicidade de Medicamentos. Marketing.

ABSTRACT
The paper deals with the pharmaceutical industry’s links to the knowledge industry, through powerful marketing strategies. With the aim of scientifi cally legitimizing its products, the pharmaceutical industry interferes with the production of medical knowledge. In the form of a mechanism for directing economic interests, it funds drug research, biases its results and stimulates the production and publication of scientifi c papers. This is a mechanism that threatens important ethical issues: it transforms the process of scientifi c legitimization into a marketing strategy, compromises the credibility of the process of constructing medical knowledge and encourages distortions of the criteria for evaluating the quality of scientifi c papers.
Departamento de Planejamento, Políticas DESCRIPTORS: Drug Industry. Biomedical Research. Drug Publicity.
e Administração em Saúde. Instituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Marketing.
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil Correspondência | Correspondence:
Vera Regina da Silva Miguelote
Centro Clínico Mariz e Barros
R. Mariz e Barros, 176/706 – Icaraí
24220-121 Niterói, RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
Recebido: 2/12/2008Revisado: 2/9/2009Aprovado: 24/9/2009 INTRODUÇÃO
Confi gurado como mercadoria, o conhecimento ganhou que a produção de conhecimento médico sustentada pela a perspectiva de impulsionar investimentos da indústria, pesquisa, assim como a divulgação de seus resultados, tanto para o fi nanciamento de projetos de pesquisas transformou-se em mercadoria. Ou seja, pesquisas quanto para a produção de bens científi co-culturais. científi cas sobre produtos farmacêuticos alimentam a Por meio de uma dinâmica de publicação que envolve produção de artigos, a circulação de conhecimento e editoras, revistas, artigos, entre outros mecanismos a venda de medicamentos. É com este mote que parte estratégicos de divulgação de seus produtos, a indústria importante das atividades de pesquisa e da produção potencializa interesses econômicos na área biomédica, e distribuição de conhecimento biomédico está sob entrelaçando geração de lucro a prestígio científi co.
controle de interesses comerciais privados.
Em estudo sobre a política econômica da produção Na lógica biomédica, a credibilidade da pesquisa na e difusão do conhecimento biomédico, Camargo área de medicamentos baseia-se, preferencialmente, Junior3 (2009) cunhou a expressão indústria do conhe- no combate a doenças específi cas, e está condicio- cimento para defi nir a confi guração contemporânea nada à exigência de legitimação científi ca do uso do dos processos de negociação da produção científi ca, medicamento. Essa demanda ancora-se na produção que envolve a construção do conhecimento médico de pesquisas que “demonstrem”, de forma “cientifi ca- e a produção de artigos científi cos. Tratou o assunto mente” apropriada, a efi cácia do novo medicamento na como parte integrante do Complexo Médico Industrial,8 apontando distorções no exercício de poder que comprometem o controle das atividades de pesquisa e Em função “dessa necessidade” e com a fi nalidade de alavancar vendas, a indústria desenvolveu, como estratégia, formas variadas de apropriação criativa Embora a produção científi ca tenha vários níveis, e de resultados de pesquisa. Trata-se da utilização de represente uma multiplicidade de interesses, a principal técnicas de enviesamento de resultados, tais como instância de validação do conhecimento é a pesquisa expansão da base de usuários das novas drogas, ou, até empírica. À medida que a produção econômica passou a mesmo, criação de novas doenças ou exagero na ameaça depender desse valor, legitimar produtos farmacêuticos de agravos – o que, na literatura de língua inglesa, é por meio da pesquisa científi ca passou a ser questão crucial para a indústria. Conhecimento revestido de cientifi cidade transformou-se em argumento estratégico Em seu estudo sobre o processo de construção de novas doenças ou disfunções, Payer15 (2006) identifi cou dez táticas de manipulação de pesquisas: 1- atribuir a uma Confi gurando-se em poderosa engrenagem de dire- função normal algo de errado a ser tratado; 2- imputar cionamento de interesses econômicos, o conjunto das sofrimento onde não existe; 3- defi nir ampla proporção estratégias de marketing da indústria do conhecimento da população como passível de sofrimento pela doença; envolve fi nanciamento de pesquisas na área de medi- 4- defi nir condição de defi ciência ou desequilíbrio; 5- camentos, enviesamento de seus resultados, engendra- dar a voz a spin doctors, especialistas em comunicação mento de doenças, e incentivo à produção e publicação (que interpretam resultados de acordo com os interesses em jogo); 6- particularizar enfoque sobre o tema; 7- exagerar benefícios do tratamento a partir de dados O objetivo do presente trabalho foi discutir como a estatísticos seletivos; 8- pontuar de forma distorcida indústria farmacêutica, com enorme força econômica, o objetivo; 9- promover tecnologias tratando-as como utiliza-se de estratégias de marketing para se articular ao “magicamente” livres de riscos; 10- transformar um que, metaforicamente, pode-se denominar indústria do sintoma, sem maior signifi cado, em sinal de doença conhecimento. Por se caracterizar como um processo de séria.Considerando que a dualidade normal-patológico produção controlado por interesses privados, o conjunto de atividades relacionadas à construção, validação é estruturante no pensamento biomédico,4-6 a estra- e difusão do conhecimento médico fi ca submetido à tégia consiste na busca de um desvio do normal, cuja interferência da lógica econômica da indústria.
demarcação pode dar sustentação a uma demanda por terapêutica medicamentosa. Em função de inevitáveis componentes socioculturais, existe uma plasticidade na LEGITIMAÇÃO CIENTÍFICA COMO
defi nição de “normalidade” – e, portanto, também de ESTRATÉGIA DE MARKETING
doença – que permite a transformação de fenômenos fi siológicos em “desvios”; ou seja, ao serem caracteri- Financiar programas de pesquisa e produzir conhe- zados como patologias, precisam ser tratados.
cimento científi co – de acordo com seus interesses – passou a ser uma estratégia fundamental de marketing Tendo como referência a dimensão construtivista da da indústria farmacêutica. Nesse sentido, pode-se dizer produção técnico-científi ca, Hess10 (1995) defendeu, em seus estudos sobre classe, gênero, sexo, raça e A dimensão desse processo de medicalização é de tal etnicidade, a possibilidade de certos aspectos cultu- ordem que a produção de medicamentos na área da rais serem re-signifi cados pela ciência e implantados sexualidade não está direcionada à doença, mas ao socialmente. Para designar esse mecanismo, o autor aumento da potência. Desde o lançamento do Viagra® usou a metáfora do totemismo (tecnototemismo); e, em l998, mais de 17 milhões de prescrições foram feitas para explicar a surpreendente facilidade com que a para o tratamento de disfunção erétil. Em 2001, a Pfi zer sociedade assimila novos conhecimentos e novas declarou faturamento de 1 bilhão e meio de dólares.13 tecnologias, usou a expressão strategies of circumven-tion (estratégias de “contorno”).
Na tentativa de reproduzir na sexualidade feminina o sucesso alcançado com o lançamento do Viagra®, a Signifi ca que, para a indústria farmacêutica introduzir indústria farmacêutica está investindo numa linha de determinada substância no mercado, precisa associá-la pesquisa que busca uma nova “realidade”: a disfunção ao conhecimento. É a caracterização do produto como sexual feminina. Moynihan13 (2003) considera que o evidência científi ca que direciona a venda. O meca- objetivo é de criar necessidades e abrir mercado para nismo é o descrito acima: em primeiro lugar, o foco de outros medicamentos. Moynihan13 critica o patrocínio interesse está em encontrar, a partir de uma concepção dessas pesquisas e cita como exemplo a publicação biológica, uma descrição consensual de um estado de de um artigo pela JAMA em fevereiro de 1999, no natureza; em segundo, defi nir um desvio deste estado, qual seus autores (vinculados à Pfizer) anunciam para caracterizar como anormalidade; e, em terceiro, como resultado de pesquisa a prevalência de 43% de investir em pesquisas voltadas à correção dessa pres-suposta anormalidade.
disfunção sexual em mulheres com idades entre 18 e 59 anos. Após seis meses de circulação do assunto na Exemplo desse processo em nossa sociedade foi mídia, a Pfi zer anunciou que um novo medicamento descrito por Lexchin11 (2006), que relata como a estava sendo testado para tratamento de desordens da Pfi zer transformou a ação do Viagra® (sildenafi l) – tratamento, considerado efi caz e seguro, da disfunção erétil secundária a causas médicas (diabetes, doenças Segundo o autor,13 a análise dos dados dessa pesquisa da coluna, entre outros) – em prescrição direcionada mostrou sérios problemas. Cerca de 1.500 mulheres a homens saudáveis, com o objetivo de melhorar o foram questionadas, devendo responder com sim ou desempenho erétil, capacitando-os a manter a ereção não se tinham experimentado algum problema de uma lista de sete, nos últimos meses do ano anterior. A lista incluía critérios de avaliação da sexualidade, tais como Confi nado ao tratamento de causas secundárias, seria falta de desejo sexual, ansiedade sobre a performance um medicamento com sucesso bastante modesto sexual e difi culdades com lubrifi cação. Se a mulher em função do mercado limitado. Assim, a principal respondia sim a uma das sete questões, era incluída no motivação da Pfi zer em patrocinar pesquisas sobre o grupo caracterizado como disfunção sexual.
Viagra® foi dar sustentação científi ca ao seu lança-mento, impulsionando, com essa estratégia, a sua Como estratégias de marketing, esses “dados cientí- comercialização. Com a intenção de transformá-lo em fi cos” foram amplamente divulgados pela mídia, com a produto com grande abrangência de uso na população seguinte afi rmação: “43% das mulheres têm disfunção masculina, o critério de sucesso do tratamento da de uma forma ou de outra, mas nem todas têm a forma disfunção erétil precisava ser defi nido. Assim surgiu mais severa”. Trata-se de um processo que busca a a necessidade de expandir a percepção de prevalência “conscientização pública do problema”, ou seja, a acei- da disfunção erétil. A aposta inicial foi direcionada aos tação da disfunção sexual feminina como uma doença homens com idade acima de 40 anos, baseada na supo- sição de que tinham uma signifi cativa preocupação com a ereção. E, fi nalmente, o Viagra® passou a ser Apontando controvérsias relativas a normatização de apresentado como importante opção de tratamento para respostas sexuais fi siológicas femininas e ao processo homens com qualquer grau de disfunção, inclusive de medicalização da sexualidade, Moynihan13 (2003) falhas raras ou transitórias no desempenho.11 defende a importância de acompanhamento mais rigo-roso desses processos de pesquisa. Para ele, categorizar A reifi cação da ereção como essência da sexualidade difi culdade sexual como disfunção tem a fi nalidade de masculina abriu caminho para a construção do conceito induzir os médicos a prescreverem medicamentos que de disfunção sexual masculina. Em outras palavras, “corrijam” (dis)funções sexuais.
foram capturados dados da sexualidade masculina e postos a serviço da suposta condição ideal (ou normal). A despeito da imprecisão conceitual, a abordagem crítica Em nome da saúde, a partir de achados do cotidiano, sobre a exploração estratégica da fronteira entre normal um poderoso mecanismo de intervenção da vida cria e patológico pela indústria, pode ser marcadamente formas padronizadas de comportamento.
elucidada pelo argumento de Canguilhem6 (2006): “Se o normal não tem a rigidez de um fato coercitivo americana que prevê a liberação de documentos sob a coletivo, e sim a fl exibilidade de uma norma que se guarda do governo (Freedom of Information Act), um transforma em sua relação com condições individuais, grupo de pesquisadores obteve acesso à documentação é claro que o limite entre o normal e o patológico é da empresa submetida à corte de justiça.1 impreciso. No entanto, isso não nos leva à continuidade de um normal e um patológico idênticos em essência Após analisar esses documentos, Steinman et al16 (2006) [.], a uma relatividade da saúde e da doença bastante identifi caram como alvo dos interesses do marketing confusa para que se ignore onde termina a saúde e onde do laboratório a seleção de três grupos específi cos de médicos, a saber: 1- médicos selecionados em função da relação dólar/prescrição; 2- médicos com poder de infl uência (expositores de programas); 3- líderes, iden- PESQUISA E PUBLICAÇÃO: ESTRATÉGIAS NA
tifi cados pela atuação nas associações médicas locais.
PROMOÇÃO DE MEDICAMENTOS
Além disso, com o objetivo de passar a idéia de envol- Caracterizando uma poderosa engrenagem que articula vimento com a prática médica, a Parke-Davis alocou a indústria farmacêutica à indústria do conhecimento, orçamento específi co em “programas para residentes”: uma estreita relação entre pesquisa e produção de métodos educativos; pagamento a médicos conferen- evidências científi cas alimenta a produção de artigos, cistas; criação de conselhos consultivos; promoção difusão de conhecimento e venda de medicamentos. de encontros de consultores; além de estratégias de Com interesse concentrado na publicação e propagação pesquisa e publicação. A análise da documentação de conhecimento médico, a indústria farmacêutica interna mostrou a enorme extensão das atividades – sem priorizar a qualidade – investe na quantidade de marketing do laboratório, para muito além da de publicação. Assim, produção de conhecimento propaganda aberta, apontada por eles como a ponta do médico tornou-se uma linha de produção sustentada iceberg. A maior parte das atividades (e dos recursos) ocorre como propaganda dissimulada, incluindo-se aí A necessidade de dar credibilidade a resultados de interesse econômico impulsionou o investimento da Embora os artigos e publicações especializadas indústria farmacêutica em pseudo-pesquisas. Apesar se baseiem nas provas produzidas no decorrer das da aparência de pesquisa verdadeira, seu objetivo não pesquisas, os relatórios dos resultados das pesquisas são é a produção de novos conhecimentos. Essas pesquisas manipulados de acordo com os interesses comerciais são, na verdade, estratégicas de marketing, com meto- da indústria e apresentados aos médicos sob a égide dologia deliberadamente enviesada para fortalecer a da credibilidade científi ca. Trata-se de estratégias de posição comercial de determinado medicamento, com marketing direcionadas aos médicos prescritores, que, resultados que “comprovam” o que está sendo dito para se manterem atualizados precisam acompanhar a divulgação das mais recentes evidências científi cas. Além disso, embora uma avaliação mais atenta revele Uma vez que a intervenção médica é direcionada por que a maioria das chamadas inovações farmacológicas esse conhecimento, é fundamental que tais relatórios deriva, na verdade, de pequenas modificações em produtos já existentes ou simplesmente de renovação de No entanto, conforme aponta Angell1 (2007), já existem patente, ao anunciar uma série de novos medicamentos, estudos mostrando a propensão de pesquisadores baseada em publicação científi ca, a indústria farma- patrocinados pela indústria a favorecerem os produtos cêutica reforça a falsa idéia de freqüentes mudanças da empresa. Para a autora, o caráter tendencioso dos ensaios encontra-se na simples supressão de resultados Aqui, cabe citar como exemplo o caso da gabapentina negativos, ou quando o pesquisador elogia uma droga, (Neurotin®): um medicamento aprovado pela Food and cujos resultados não justifi cam qualquer entusiasmo. Drug Administration, dos Estados Unidos, em 1994, para Essa tendenciosidade pode também estar embutida no tratar apenas crises epiléticas não controladas por outras projeto de pesquisa, como é o caso de ensaios clínicos drogas. Visando expandir o mercado, a Parke-Davis controlados por placebo (pílula inerte). Isso signifi ca engendrou um plano chamado “estratégia de publica- que o medicamento está sendo comparado com coisa ções” para fazer com que os médicos prescrevessem nenhuma e que, se comparado com outros existentes no o Neurotin® com outras indicações terapêuticas. O mercado, podem, na verdade, se revelar menos efi cazes governo americano levou a empresa aos tribunais por do que quando comparados com placebos. Existem essa violação. Em 2004, a Pfi zer (que incorporou a ensaios, para estudar drogas direcionadas ao tratamento Parke-Davis em 2000) admitiu sua responsabilidade de pessoas mais velhas, cujos testes são feitos em na violação da regulação federal na promoção da gaba- pessoas jovens. Em outros casos, a comparação da nova pentina, encerrando o processo por meio de um acordo droga é feita com um medicamento antigo, ministrado com o governo. Posteriormente, com base na legislação Pode-se dizer que, na medida em que a ideologia cientí- Ao analisar dois artigos publicados nos Anais da fi ca é projetada como produtora de verdades absolutas, Academia Brasileira de Ciências, sobre a consolidação a ciência confere ao conhecimento a categoria de mito. da presença brasileira na base de dados ISI Thomson- Ressonância disso é a suscetibilidade dos médicos a Reuters, Guimarães9 (2007) também critica o método assimilarem a suas práticas prescritivas, sem avaliação de seleção dos artigos: primeiro, porque o mérito e/ou crítica, os medicamentos revestidos de “caráter cien- relevância das contribuições científi cas são remetidos tífi co”, apresentados pelos propagandistas (represen- a uma categoria chamada “impacto”; segundo, porque tantes comerciais da indústria farmacêutica).2 esse “impacto” é indicado pelo número de vezes que o artigo é citado em periódicos indexados.
Camargo Junior2 (2003) defende que é nesse contexto de idéias pré-estabelecidas, no qual os médicos se Por se tratar de dados quantitativos, a análise desse abstraem da análise crítica dos resultados de pesquisas, “impacto” pode ser fortemente influenciada pelo que a indústria farmacêutica surge como fi nanciadora de modo como a pesquisa foi organizada, como é o caso pesquisas e apropria-se da possibilidade de direcionar dos estudos multicêntricos, onde é possível observar: interesses na área biomédica. Ao incentivar a produti- 1- grandes redes de pesquisadores com potencial para vidade de conhecimento, a indústria joga com a idéia a captação de pacientes que se submetam a protocolos de irremediável progresso tecnológico. Dessa forma, padronizados; 2- remuneração dos pesquisadores por justifi ca o enorme volume de publicações, produzindo paciente captado; 3- precária garantia dos padrões éticos no médico – cujo reconhecimento depende de se manter de pesquisa. Assim sendo, é provável que a partici- atualizado – a inquietante sensação de estar permanen- pação de autores nacionais nos artigos selecionados pela base de dados ISI tenha sido irrisória. No entanto, Segundo Angell1 (2007), empresas de educação médica receberam o crédito formal pela autoria, reconhecida são contratadas para elaborar os artigos, além de conse- pelas instâncias de avaliação da produção de pesquisa guir “autores” para assiná-los. Uma delas, por exemplo, no País (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal recebeu US$12.000 para cada um dos 12 artigos jorna- de Nível Superior –CAPES, Conselho Nacional de lísticos que preparou; e pagou aos “autores” acadê- Desenvolvimento Científi co e Tecnológico – CNPq, e micos US$1.000 por assinatura. Num dos relatórios fundações estaduais de apoio à pesquisa).9 enviados à Parke-Davis, consta um anúncio em que a empresa demonstra difi culdade para terceirizar autoria: Ao abordar o tema das questões éticas na pesquisa cien- “Autor interessado, ainda brincando de esconde- tífi ca, Castiel et al5 (2007) concordam que “pode haver esconde por telefone”. E depois, em letras maiúsculas: vários tipos de má-conduta e fraudes no meio científi co, “[NOSSA FIRMA] TEM O TEXTO PRONTO, SÓ como o gerenciamento dos protocolos, amostragens e PRECISAMOS DE AUTOR” (p. 174). Na mesma dos dados em geral”, além de “um crescente aumento de linha de abordagem, Guimarães9 (2007) argumenta autores por artigo, signifi cando mais do que o suposto que, na maioria dos ensaios clínicos patrocinados pela aumento dos integrantes dos grupos de pesquisa, mas indústria para testar novas drogas ou procedimentos, sim a possível prática de “escambo autoral”.
os protocolos são elaborados pelo patrocinador e os A despeito de tudo isso, em relação ao Brasil, dados coletados são integralmente enviados, em estado Guimarães9 (2007) defende que não se deve desesti- bruto, para serem analisados por ele. Isso signifi ca que, mular ou conter o fi nanciamento de ensaios clínicos pela embora a participação dos médicos nas pesquisas se indústria ou por outras instituições externas, desde que limite à inclusão de pacientes e à execução dos proce- nos processos de pesquisas sejam garantidos padrões dimentos previstos em protocolo padronizado, são eles éticos e práticas republicanas de remuneração.
Em se tratando da qualifi cação de artigos publicados, CONSIDERAÇÕES FINAIS
a situação complica-se ainda mais. Talvez seja esse o sentido do questionamento feito por Novaes14 (2007) A abordagem da indústria do conhecimento na pers- quanto à utilização de métodos de avaliação baseados pectiva de uma poderosa engrenagem conduzida no número de citações de um artigo como indicador por estratégias de marketing pretendeu contribuir na de impacto da pesquisa publicada, assim como de seu compreensão dos mecanismos de interferência do poder potencial para criação de novos conhecimentos. Em seu econômico dominante, representado pela indústria argumento, Novaes14 apresenta resultados de estudos farmacêutica, no processo de produção, divulgação e exploratórios na área da pesquisa em saúde, mostrando aplicação de conhecimento médico.
que, nos artigos analisados, “apenas em um pequeno número de artigos o trabalho citado foi considerado Uma vez que o interesse em fi nanciar pesquisas, inter- relevante”, o que signifi ca que o número de citações não ferir em seus resultados e publicá-los está relacionado está diretamente associado à importância da produção a estratégias de marketing da indústria farmacêutica, os recursos destinados a pesquisas acabam sendo direcionados aos ensaios que dão resultados satisfató- No Brasil, a possibilidade dessa interação em novas rios, ou seja, que divulguem o laboratório e aumentem bases pode ser constatada no mecanismo de reformu- lação periódica do consenso da terapia antiretroviral (TARV). Em 1996, a Coordenação Nacional de DST/ Apesar dos esforços em manter velados os reais inte- Aids do Ministério da Saúde (MS), assessorada por resses em jogo, o direcionamento enviesado de recursos especialistas, formulou o primeiro consenso da TARV. revela importantes contradições, ou seja, embora o A partir de então, periodicamente, o comitê atualiza as discurso da indústria anuncie colaboração na produção recomendações de acordo com as evidências científi cas de conhecimento médico, essa colaboração não está Trata-se, portanto, de uma engrenagem que ameaça Esse processo é um exemplo da apropriação pública de importantes aspectos éticos: transforma o processo conhecimento científi co, mais próximo das demandas de legitimação científi ca em estratégia de marketing, de saúde da população e menos sujeito às interferências compromete a credibilidade do processo de construção do conhecimento médico e incentiva distorções nos crité- Concluindo, não se trata de negar a importância dos rios de avaliação de qualidade dos artigos científi cos.
estudos que avaliam efi cácia e efetividade dos medica- Dizer que interesses comerciais não devem infl uenciar mentos, essas investigações são fundamentais. Em sua nas decisões médicas é uma concepção consensual. prática clínica, os médicos dependem de informações Mediante a ineficácia dos esforços para manejar sobre efeito e segurança das substâncias para se orien- confl itos de interesses e abusos de poder, novas estra- tarem em suas prescrições. O desafi o está em garantir tégias precisam ser implementadas: não descuidar de que interesses econômicos não se contraponham a uma regulação rigorosa; fazer uma estrita separação aspectos éticos e metodológicos imprescindíveis no entre atividades comerciais e científi cas; além de uma processo de produção do conhecimento, para que se profunda reavaliação da interação entre profi ssionais obtenha resultados confi áveis e isentos de confl itos médicos, organizações profi ssionais e indústria.
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Source: http://ggn.horia.com.br/sites/default/files/documentos/Industria_do_conhecimento.pdf

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