Jornal Mulier – Agosto de 2006, Nº 31 Anorexia, depressão, histeria, síndrome de pânico: mulheres são as principais vítimas de transtornos psicossomáticos
Um dos grandes enigmas da humanidade, os transtornos mentais até hoje procuram ser explicados por diversas áreas do conhecimento. Ao menos já se sabe que estas doenças têm raízes psicológicas, biológicas, sociais e culturais. Uma curiosidade é que a maior parte da população acometida é formada por mulheres, fato motivador de muito preconceito e todo tipo de especulação sobre as suas causas. Durante o século XIX, a ciência passou a disseminar a ideia dos homens serem mais identificados com a cultura, enquanto as mulheres, com a natureza. Os homens agiam sob o predomínio da razão, da inteligência. As mulheres agiam sob o domínio do coração, dos sentimentos e da sensibilidade, sendo seres mais frágeis, sedutores, submissos e dóceis. Mulheres que não seguiam esse padrão eram tidas como seres antinaturais. A figura feminina também era vista, assim como a natureza, como um ser misterioso e imprevisível. Esse conjunto de características do bem e do mal levou à consideração da mulher como um ser perigoso. Ela deveria estar submetida a um conjunto de regras rígidas que assegurassem o cumprimento de seu papel social de esposa e mãe, garantindo a vitória do bem contra o mal. A maternidade que cura A maternidade era considerada a essência da mulher, estava inscrita em sua própria natureza. Para aquelas que não quisessem ou pudessem ser mães, aos olhos dos médicos não haveria salvação. Cedo ou tarde, acabariam acometidas pela insanidade. Portanto, acreditava-se que a maternidade poderia prevenir e até mesmo curar os distúrbios psíquicos relacionados à sexualidade, a predisposição à doença mental estaria inscrita no organismo feminino. Ao recusar-se a exercer seus papéis sociais de esposa e mãe, ela poderia desenvolver doenças. A iniciação e o término da vida sexual da mulher eram períodos delicados para a saúde da mesma, pois representavam momentos propícios ao aparecimento de distúrbios mentais. A mística em tono da menstruação fazia com que tivesse qualidades mágicas associadas à loucura e à morte. Nos relatórios médicos psiquiátricos, a menstruação aparecia como um dos pontos mais valorizados na construção dos diagnósticos, sendo comum a observação de irregularidades menstruais e o agravamento dos sintomas da doença durante este período. As especulações sobre a sexualidade feminina também levavam a crer ser anormal a mulher que sobrepunha o seu desejo e prazer sexual ao instinto materno. Sua sexualidade somente não ameaçaria sua integridade física, moral e mental se ficasse entre a falta e o excesso, além de exclusivamente no leito conjugal. Para os médicos, de modo geral, as crises nervosas e histéricas seriam originárias na puberdade com o despertar dos desejos sexuais não realizados e poderiam ser agravadas por leituras inconvenientes, pela vida sedentária e pela beatice religiosa. Relegadas à própria sorte Até o século XIX, as pessoas com distúrbios psíquicos geralmente perambulavam abandonadas pelas ruas ou eram trancafiadas discretamente em suas casas. Mais tarde, a psiquiatria passou a ver a loucura como doença, defendendo a permanência dos doentes em abrigos terapêuticos, onde estariam protegidos, o doente e a sociedade, já que se temia um possível contágio. O historiador e professor holandês, Martin van Creveld, observa que as imagens de asilos para loucos retratam poucas mulheres. Os homens constituíam a maioria dos internos, retratados como lunáticos embrutecidos, amarrados, acorrentados e submetidos a todo tipo de tratamento desumanizante. Somente quando a psiquiatria passa a ver as pessoas perturbadas como doentes e humaniza o tratamento, começa a aparecer a figura da mulher perturbada. Era geralmente jovem e bonita. Não aparecia acorrentada, mas reclinada em almofada em quarto confortável com um olhar de assombro, como o de quem não sabe onde está, talvez pedindo ajuda. A partir de então, as mulheres passam a ser maioria entre os internos, fato que, segundo o historiador, deve-se à melhora no atendimento, pois elas não aguentariam os tratamentos dispensados aos homens. Mesmo assim, como procedimentos terapêuticos, incluía-se extirpação de clitóris, introdução de gelo na vagina e cirurgias para remoção de órgãos reprodutores, eletrochoques e a lobotomia, cirurgia que retirava partes do cérebro e causava danos irreparáveis. Diversidade de sintomas
Entre os principais “distúrbios femininos” estão a neurastenia ou exaustão dos nervos, a histeria, a esquizofrenia, a anorexia e a depressão. Os sintomas variam das dores de cabeça, irritação uterina, menstruação irregular, desmaios, recusa a comer, paralisia, gritos sem razão aparente, tendência ao isolamento, alucinações e violência contra si e os outros, características da esquizofrenia, que atinge aproximadamente 2% da população. Em complementação aos tratamentos psiquiátricos, a Psicologia, com a psicanálise, tentou a cura dos distúrbios mentais através da fala, levando-se em consideração a sexualidade como a base da análise dos problemas somáticos. A insatisfação sexual feminina causava a histeria, na medida em que transferia para o corpo o que não encontrava outras formas de expressão. A clientela inicial de Freud, considerado o pai da psicanálise, foi em sua maioria composta de mulheres. Nos métodos psicanalíticos, o paciente encontraria os motivos de sua angústia dentro de si mesmo. Mas o feminismo bateu de frente com esta ideia de que os problemas da mulher estariam dentro dela mesma. Acreditava-se que a infelicidade feminina era causada pela sociedade patriarcal e pelo machismo. O próprio Freud desistiu e em seus últimos anos de vida admitiu que trinta anos de pesquisas da alma feminina não tinham sido suficientes para esclarecer o que as mulheres queriam. Para ele, a vida sexual da mulher adulta era um “continente misterioso” para a Psicologia. A partir de 1950, outro tipo de tratamento amenizou o sofrimento das pessoas internadas em hospitais psiquiátricos e, de certa forma, reduziu o papel da psicanálise. Foi o desenvolvimento de drogas psicofarmacêuticas, substâncias limpas, simples e de fácil administração, não causadoras de danos irreversíveis aos tecidos nervosos, como a lobotomia, nem convulsões como os eletrochoques. Medicamentos como o Prozac e Tofranil também aliviavam os sintomas de forma rápida e mais fácil que anos de análise. Justamente com tais mudanças, o movimento antimanicomial, iniciado na Itália, ganhou apoio da sociedade. A lei antimanicomial entrou em vigor no Brasil em 2001 e determina
um tratamento mais humanizado para as pessoas portadoras de transtornos psíquicos, com a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição pela assistência aberta, institucionalizando parâmetros para a internação obrigatória de doentes mentais. Hoje a doença mais comum entre as mulheres é a depressão, atingindo quase 20% da população feminina e representando um grave problema social, sendo responsável por pelo menos a metade de todos os suicídios. A anorexia é outra doença tipicamente feminina, 95% a 98% das pessoas acometidas por ela são mulheres. Cultura x Biologia
Conforme a afirmação do início da reportagem, os transtornos psíquicos podem ter suas origens em questões sociais, psicológicas, ambientais e culturais. Observamos que o ambiente social onde a mulher vive é muito diferente do passado. Se por um lado ela tem mais autonomia econômica, sexual e social, também aumentaram suas responsabilidades em competir no mercado de trabalho, em cuidar dos filhos e viver em um mundo estressante. Estudos científicos tentam explicar porque as mulheres são mais sujeitas a tais transtornos em comparação aos homens. Nas últimas décadas, com o desenvolvimento de tecnologias de ponta, está sendo possível mapear áreas do cérebro até então desconhecidas. Uma série impressionante de variações estruturais, químicas e funcionais entre o cérebro masculino e feminino está sendo conhecida. Os resultados podem propiciar o desenvolvimento de tratamentos específicos de acordo com o sexo para problemas como a depressão, vício, esquizofrenia e transtorno de estresse pós-traumático. Descobriu-se, por exemplo, que anomalias no cérebro estão por trás da esquizofrenia e que o cérebro feminino produz menos o hormônio serotonina em comparação ao homem, podendo explicar porque as mulheres estão mais sujeitas à depressão, pois a serotonina é responsável pelas variações de humor. Quando o homem passa por estresse, ele biologicamente reage de forma mais extrovertida, como através do alcoolismo ou da agressividade. Já a mulher, também biologicamente e culturalmente falando, é menos explosiva, até porque sabe que por instinto de sobrevivência dela e dos filhos, uma atitude agressiva e de risco pode comprometer o futuro de sua família. Ao reagir ao estresse de modo mais introvertido, não explicitando suas emoções agressivamente, ela pode estar mais propensa a desenvolver uma depressão. Esta é apenas uma entre tantas suposições atualmente discutidas sobre as diferenças de gênero e que podem auxiliar em uma melhor qualidade de vida para as mulheres. Fontes
ENGEL. Magali. Psiquiatria e feminilidade. In DEL PRIORE, Mary (org.). “História das Mulheres no Brasil”. São Paulo: Contexto, 1997. VAN CREVELD, Martin. “Sexo privilegiado”. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. “Revista de História”, agosto de 2005. Revista “Viver Mente e Cérebro Especial Diferença entre os Sexos”, março de 2005. Revista “Scientific American Especial Ciência e Saúde / Mulher”, sem data.
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