A Europa e a Memória
Artigo originalmente publicado em Outubro de 2005.
Cartier-Bresson • Berlim Ocidental, 1962
Os símbolos são códigos identitários. Fazendo uso de um passado que se quer presente,
aí se reeditam práticas colectivas que estão habitualmente concentradas num tempo que
passou. Numa escrita constante de fronteiras mutáveis sobre o outro, o universo de
possíveis de um símbolo estará em tudo aquilo que comporta uma atitude relacional,
proporcionando uma certa unidade no diferente. É assim com o crucifixo, com a foice e
o martelo, com a suástica. Mas também com tudo aquilo que se massifica e limita o
alcance de uma certa força originária, como é o caso da imagem-objecto de Che.
O símbolo é então indissociável de uma simbólica que nos ajuda a preservar aquilo que
a memória por vezes esquece. Actualmente, quando o visitante chega a Auschwitz e é
convidado a percorrer os fragmentos intactos daquele que foi o expoente de
industrialização do extermínio nazi, é transposto para o palco da mais meticulosa das
atrocidades que ali foram cometidas durante o Holocausto. E isso pode ser tão só um
corte de cabelo. É uma experiência sensorial, embora dialogante com símbolos, valores
e atitudes. Mas a simbólica vai muito para além de uma simples enumeração de
incursões passadas, podendo transformar-se num instrumento de vanguarda e disputa da
ordem que vigora em cada presente, deixando antever aquilo que ainda virá a integrar
Os símbolos apelam a um sentido de particular reverência. Unificam. Excluem. São tão
mais transversais a uma produção abrangente de significações quanto menor for a sua
auto-reflexividade e a sua impermeabilidade ao decurso dos acontecimentos em redor.
Os totalitarismos que desfiguraram a Europa no século XX são disso exemplo. À
distância de poucas décadas sobre o abismo do nazismo e do estalinismo, pensávamos
que o comunismo envelhecia bem. Mas isso é uma verdade de meio alcance, possível
apenas para aquela Europa que faz fronteira com o Leste, não integrando a sua
geografia histórica. E que arrisca uma incapacidade genética para conservar uma
memóriaque não pode ser perdida.
Neste ano em que comemorámos os sessenta anos sobre a libertação de Auschwitz, a
Comissão Europeia pretendeu aprovar uma generosa lei anti-racismo e xenofobia que
incluía a proibição da iconografia nazi nos actuais vinte e cinco países membros da
União, tal como acontece na Alemanha desde o pós-Guerra. O projecto fracassou
quando a Hungria, a Lituânia, a Estónia, a República Checa e a Eslováquia exigiram
que a interdição fosse alargada à foice e ao martelo. Alguns países, aliás, onde o
símbolo já é ilegal por legislação interna. Mas isso é extraordinário para aquela Europa
que ficou no ladro certo do Muro de Berlim, onde a tradição democrática dominante
nunca permitiu associar comunismo a opressão sobre um espaço político palpável,
tornando inusitadas as palavras de um eurodeputado eleito num país da antiga Cortina
de Ferro: «se decidimos banir um [símbolo totalitário], devíamos decidir banir todos O senso comum aborda os símbolos a partir das leituras permitidas pelo pensamento
dominante. E aí, para todos os efeitos, Estaline pertence ao rol dos que puderam aceder
aos bastidores do julgamento histórico da Segunda Guerra Mundial e das décadas
subsequentes. Logo, escapou-se aqui uma oportunidade de concluir o essencial: proibir
símbolos, sobretudo representativos de aparelhos de Estado tão brutais quanto estes,
apenas induzirá um pacto de silêncio que ilude a realidade. Essa é uma forma recorrente
de amnésia, porque não singulariza absolutamente nada naquele fenómeno cujas
cicatrizes pretende ocultar. Como escreveu Hannah Arendt em On Violence (1969), «as confissões de culpa colectiva são a melhor salvaguarda possível contra a descoberta dos culpados, e a própria extensão do crime a melhor desculpa para não se fazer nada». Daí que seja uma amostra de fraqueza política a interdição de símbolos que já
contêm uma imensa carga de interditos. Até porque quando as instituições alemãs
garantem que a actual força do Estado protegerá a comunidade judaica contra a
reincidência do anti-semitismo, não se poderá ignorar que o veto da suástica não estanca
o recrudescimento da extrema-direita e do ideário nazi no país. São incongruências que
O movimento proibicionista do Leste é igualmente sintomático. Mas o mais
preocupante aí não é a legislação que vem sendo publicada, impossível de harmonizar a
nível europeu e explicável em parte pela incapacidade de digerir a violenta
transformação das suas estruturas pós-comunistas, mas sim o modo como esses países
vêm afirmando a sua independência por oposição à Rússia. Paralelamente à proibição
dos símbolos comunistas, há uma desconfiança duradoura com o antigo centro político
da União Soviética. Internamente, essa tensão apoia-se no racismo dos nativos contra
muitos dos cidadãos russos que se deslocaram para o Báltico antes de 1989 e que não
têm hoje qualquer nacionalidade. Mas é uma desconfiança que se agrava no plano
externo com o complexo pós-imperial da Rússia autoritária de Vladimir Putin, que
interfere nas soberanias da região ao fomentar candidatos anacronicamente «pró-
Kremlin», enaltecendo as décadas de ocupação do Exército Vermelho e recuperando
alguns dos símbolos desse tempo, como o hino da URSS. Esta lógica conflitual que
Moscovo imprime à sua relação com os antigos Estados das «democracias populares»
só pode preocupar esta Europa alargada que finda na Rússia. Um colosso regional que
tem fronteiras com a China e que é tão imprescindível quanto aparentemente instável.
Contrariando a capacidade de racionalizar o vivido, a ideologia do esquecimento parece
ser uma norma nos falsos debates que os símbolos suscitam. Assim como se
radicalizaram os discursos sobre o «factor Deus» no preâmbulo da Constituição
Europeia, impossibilitando que a história pudesse realmente confirmar a relevância do
cristianismo nas modalidades civilizacionais que permitiram as rupturas da
modernidade, este ressentimento com o passado indicia uma desagregação cultural que
é igualmente uma incapacidade de traçar identidades colectivas. Tal como o são, de
resto, todas as liturgias repetitivas que se cumprem oficialmente para assinalar datas
históricas que compõem o calendário da simbólica. Portugal, claro, também não escapa
à erosão da sua história recente. O salazarismo é simplesmente ignorado ou então é
mantido nas versões estereotipadas dos que militaram contra ele. Os desfiles anuais do
25 de Abril, reproduzindo uma retórica gasta, expressam precisamente esse
Assumindo a ritualização do contrato social, a domesticação da data revolucionária em
Portugal tende a transformar-se numa comemoração de si própria. Deste modo, as
práticas cerimoniais assumem o paradoxo de fomentar o esquecimento: são fábricas do
homogéneo, dirigidas para os seus símbolos. O acto de revivescência institucionaliza os
produtos cívicos resultantes do fim da ditadura, mas não os problematiza nem os faz
perdurar criticamente. Porque há uma luta pela hegemonia da memória, sempre numa
lógica de consenso. Quando sabemos que o edifício da antiga sede da polícia política
salazarista nunca será um museu porque ali foi projectado um condomínio de luxo,
traduzimos plenamente a dimensão selvagem deste recalcamento simbólico-ideológico
do nosso passado. E se não conseguimos dotar os símbolos de reversibilidade,
procuraremos certamente uma qualquer proibição no futuro. O ciclo, que é um ciclo de
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