Revista Trágica: Estudos sobre Nietzsche – 1º semestre de 2009 – Vol.2 – nº1 – pp.20-37
Nietzsche e a semântica da vontade de poder Resumo:
O artigo pretende expor a semântica inerente à dinâmica de realização da vontade de poder. O que se entende por vontade de poder aparece necessariamente a partir do evento da morte de Deus, que engendra o falecimento do poder de determinação das categorias metafísicas, no que tange à determinação da totalidade do real. A derrocada do em-si (supra-sensível) impõe que se pense a totalidade do ente através do conceito de relação. Justamente este deflagra que, com a crise da metafísica, a constituição do ente deve ser pensada a partir de relações agonísticas entre princípios sintéticos de determinação do todo (forças). Deste embate surge o conceito nietzschiano de vontade de poder como a lógica inerente à agonística do real, que se dá totalmente na superfície do mesmo, sem além e sem aquém que expliquem a totalidade do ente. Palavras-chave: Vontade de poder; Morte de Deus; Metafísica. Nietzsche and the semantics of will to power
Abstract:
This article intends to expose the semantics that are inherent to the realization of will to power. What is understood as will to power necessarily appears after the event of the death of God, which engenders the death of the power of determination of metaphysical categories in respect to the determination of the totality of the real. The fall of the in- itself (supersensible) imposes that we think the totality of the being through the concept of relationship. This deflagrates that, with the crisis of metaphysics, the constitution of the being must be thought from agonistic relationships among synthetic principles of determination of the whole (powers). From this struggle emerges the nietzschean concept of will to power as the inherent logic to the agonistic of the real, which happens totally in its surface, without a beyond or a below to explain the totality of the being. Key-words: Will to power; Death of God; Metaphysics.
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Em conhecido fragmento póstumo, Nietzsche define categoricamente o mundo
como vontade de poder – Wille zur Macht . “Este mundo é vontade de poder – e nada, além disso!” (Vontade de Poder, §1067, p.513). De semelhante modo, mas em outro
contexto, no aforismo 36 de Além do bem e do mal, Nietzsche afirma: “O mundo visto
de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu ‘caráter inteligível’ – seria
justamente ‘vontade de poder’, e nada mais” (BM, §36, p.40). O que tais afirmações
manifestam explicitamente é que o real, todo e qualquer real, manifesta-se como e
enquanto vontade de poder. Dito na linguagem da tradição: vontade de poder é o nome do principio de determinação do ente na totalidade. Trata-se, portanto, de um princípio
ontológico que responde pela semântica da totalidade do real. Se comparado com os
demais princípios ontológicos cunhados através dos séculos pela tradição filosófica, a
vontade de poder apresenta um traço singular. Ela não repete a empreitada da tradição,
cujo sentido sempre foi o de fundamentar o real a partir de um princípio ontológico
situado para além das injunções fenomênicas e devenientes que compõem a semântica
do todo. A vontade de poder se inscreve em um novo horizonte hermenêutico que de
alguma forma rompe com o horizonte interpretativo a partir do qual a tradição, a
despeito das suas vicissitudes e da pluralidade de modos de compreensão do todo,
sempre respondeu pela indagação acerca da textura ontológica do mundo, isto é, pelo
problema do fundamento. Disto se depreende um problema inicial: qual a característica
deste novo horizonte hermenêutico no qual se inscreve a vontade de poder, como o
conceito que responde pela textura ontológica do mundo? Desta questão emerge uma
outra: por que Nietzsche pensou o fundamento do real a partir de uma ruptura com a
tradição? Se a proposta do presente artigo é esclarecer, dentro dos limites de todo e
qualquer artigo, a semântica da vontade de poder em Nietzsche, deve-se começar tal
esclarecimento respondendo primeiramente as questões acima assinaladas. E isto por
um simples motivo. Todo pensamento nietzschiano se perfaz a partir de um embate
crítico com a tradição filosófica. O conceito de vontade de poder não aparece do nada,
mas responde, sobretudo, a uma questão que se pode dizer “epocal”.
Os conceitos nietzschianos, a despeito da questão da periodização de sua obra,
nascem a partir da vigência de um colapso no poder de determinação do real por parte
da tradição filosófica ocidental. Este colapso de forma alguma se reduz a uma crise
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Nietzsche e a semântica da vontade de poder
setorial na cultura ocidental, como se a tradição se manifestasse em crise somente à
medida que suas instituições, como direito, religião, moral etc., aparecessem sob a égide
de algum tipo de modificação de seu poder de persuasão na cultura. O colapso desde o
qual Nietzsche vem a ser o pensador que é, mostra-se, sobretudo, como um abalo
sísmico no fundamento animador do Ocidente como um todo. Trata-se do esgotamento
das possibilidades de realização de seu fundamento e não da dissolução de um dos
matizes da cultura somente. Assim, é o âmago do Ocidente que é atingido e não um de
seus epifenômenos. No que tange ao modo de compreensão do colapso no princípio
estruturador do Ocidente, o conceito de “morte de Deus” possui um papel central. Se
quisermos esclarecer o lugar de onde emerge o conceito de vontade de poder em
Nietzsche, é pertinente que se comece por responder a questão: o que é em essência a
morte de Deus? Para tal questão, a análise do aforismo 125 de A Gaia Ciência nos
O homem louco – não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro: Está se escondendo [.] O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com o seu olhar. ‘Para onde foi Deus’? Gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguiremos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde ele se move agora? Para onde nos movemos nós? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? [.] Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! (GC, §125, p.135).
A passagem acima contém todos os elementos necessários para uma reta
compreensão do lugar de onde emerge o conceito de vontade de poder em Nietzsche.
Ela começa com uma cena inusitada: um homem louco procura, pela manhã, com uma
lanterna na mão, a presença de Deus. Porquanto o sol vigora sempre como o elemento
desde o qual as ações humanas são possíveis, já que é ele que desvela a totalidade dos
entes com os quais cotidianamente a nossa lida se desenvolve, a presença de alguém
caminhando, em plena luz do dia, com uma lanterna na mão, apresenta-se como uma
contradição ou como um atestado de insanidade. No entanto, o texto mostra que tal
compreensão não toca o cerne do problema. O homem louco não caminha entre os
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entes, à procura de um ente escondido. Ele procura justamente por Deus, que não se
confunde com os entes com que a lida ocupacional humana correntemente se relaciona.
O que se entende por Deus neste aforismo fica evidente através de outro aforismo de A Gaia Ciência, que afirma: “O maior acontecimento recente – o fato de que ‘Deus está
morto’, de que a crença no Deus cristão perdeu crédito – já começa a lançar suas
primeiras sombras sobre a Europa.” (GC, §343, pp.147-148) Trata-se, portanto, do
“Deus cristão”. Mas, que é esse “Deus cristão”?
Dentro da tradição metafísica cristã, Deus não aparece como um ente a mais
dentro da totalidade dos entes. Ele vigora, sobretudo, como o ente responsável pela
justificação da existência de todo e qualquer ente possível. De acordo com a tradição
tomista, Deus é o nome que deflagra o puro ato de ser, que, por prescindir de potência
passiva, não apresenta em si composição ontológica, sendo, portanto, pura simplicidade.
Causa de si mesmo, Deus assume plenamente a categoria filosófica de causa eficiente, o
que o faz encerrar em si o atributo de criador. O que caracteriza a criação não é
engendrar algo a partir de matéria prévia. Criar é “causar a existência atual” (GILSON,
A existência na filosofia de S. Tomas , p.77) do ente, ou seja, a criação é própria de
Deus, à medida que Deus doa gratuitamente o ato de ser (actus essendi) a um certo tipo
de substância entitativa. Justamente por isto, os entes criados não são necessários, o que
os faz ser sempre compostos de potência passiva. Porquanto a composição ontológica
dos entes criados os faz finitos, mesmo que tais entes possam ser imortais, como a alma
humana e os anjos, eles participam de algum modo do vir a ser. Devido ao fato de sua
finitude ser justificada pela não identificação entre o ato de ser que o faz existir, e a
essência, que o faz ser “algo” que existe, e porquanto o ato puro de ser, que confere pela
criação existência a tudo, marcar indelevelmente a natureza divina, todo ente criado só
pode perseverar no ser (conatus essendi), à medida que Deus a cada vez sustende a
existência do todo. Ora, se Deus, por não ser composto, não participa, por natureza, do
mundo do vir a ser, Deus é transcendente. Tal cosmovisão, portanto, justifica a
existência do plano deveniente do real a partir da existência de um ente supremo meta-
empírico, o que significa dizer que, filosoficamente, a finitude só ganha razão de ser a
partir do momento que é subsumida pela infinitude de um ente supra-sensível.
Dizer, dessarte, que “Deus morreu” não significa outra coisa que atestar: “o
mundo supra-sensível está sem força atuante. Ele não irradia nenhuma vida”
(HEIDEGGER, A palavra de Nietzsche “Deus morreu”, p.251) A força atuante que o
mundo supra-sensível sempre representou no Ocidente dá-se na sedimentação de um
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Nietzsche e a semântica da vontade de poder
horizonte hermenêutico estruturador do modo de compreensão da totalidade do real. É
neste sentido que o aforismo citado (§125 de A Gaia Ciência) fala de sol, mar,
horizonte. Tais imagens representam o lugar ontológico assumido pelo signo Deus na
história da metafísica, qual seja, o plano meta-empírico. Justamente porque tal âmbito
sempre deu as coordenadas da existência, ao dissolver-se, surge a experiência de
niilização do real. Como diz Nietzsche: “Não vagamos como que através de um nada
infinito?” A “morte de Deus”, então, deflagra a hora em que se evidencia a total
impossibilidade de se falar do real desde o horizonte da tradição. Uma vez que tal
horizonte se caracteriza por se vislumbrar a organicidade do todo desde um âmbito
ontológico não-deveniente e porquanto o que Nietzsche compreende por metafísica é
definido como “uma dedução do condicionado a partir do incondicionado” (Vontade de Poder, §574, p.297), a morte de Deus aparece como desafio para se pensar a dinâmica
de realização do real fora da dicotomia entre sensível e supra-sensível, isto é, dizer que
Deus morreu significa dizer que só se pode pensar o mundo para além da metafísica.
Tal desafio não foi inventado por Nietzsche. Antes disto, ele é um imperativo histórico
ou um problema epocal. Por isso é que, ao declarar a morte de Deus, não está em jogo
uma sentença atéia, mas a constatação da impertinência de se pensar o real desde
categorias metafísicas, na aurora da tardo-modernidade.
O conceito de vontade de poder nasce em Nietzsche da assunção do desafio de
se pensar o real em outro horizonte hermenêutico que o metafísico. Em outras palavras:
a vontade de poder aparece em Nietzsche como possível resposta à dissolução do
mundo supra-sensível (Deus) como chave explicativa do funcionamento do real. Mas,
A morte de Deus apresentou-se-nos como dissolução do mundo supra-sensível,
como princípio normativo e justificador da totalidade dos entes. Não se trata somente de
um acontecimento religioso, que se reduziria ao nível da mera crença, mas de um
fenômeno ontológico epocal. A morte de Deus deflagra o enfraquecimento do poder de
persuasão das categorias metafísicas na tardo-modernidade. As implicações deste
acontecimento tornam-se patentes por meio dos esclarecimentos nietzschianos da
impossibilidade de sustentação da dicotomia metafísica coisa em si-fenômeno. Como
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A ‘coisa em si’ é um contra-senso. Se deixo de pensar em todas as relações, em todas as ‘propriedades’, em todas as ‘atividades’ de uma coisa, então não sobra a coisa: pois coisidade é primeiramente simulada de acréscimo por nós, por necessidades lógicas, portanto, para fins de designação, de entendimento (para ligação daquela multiplicidade de relações, propriedades, atividades). (Vontade de Poder, §558, p.291).
O fragmento acima apresenta plenamente a crítica nietzschiana à dicotomia
metafísica coisa em si-fenômeno. Nietzsche a considera um contra-senso justamente
porque, com a experiência da morte de Deus, fica evidente que o mundo supra-sensível
é poeticamente engendrado. Todo e qualquer ente não pode ser pensado à revelia de
suas múltiplas relações. E é justamente isto que ocorre com a idéia de uma coisa em si.
Toda coisa em si caracteriza-se, para Nietzsche, por ser um ente apartado de relações.
Em outras palavras, coisa em si nada mais é que a consideração de um ente ou um aspecto ôntico que se realiza justamente fora de toda implicação relacional. Com o
acontecimento da morte de Deus, Nietzsche advoga a questão ontológica da relação. A
razão desta apologia da relação pode ser compreendida a partir de um trecho de um
aforismo presente em Humano, Demasiado Humano:
Má compreensão do sonho – Nas épocas de cultura tosca e primordial o homem acreditava conhecer no sonho um segundo mundo real; eis a origem de toda metafísica. Sem o sonho, não teríamos achado motivo para uma divisão do mundo (HDH, I, §5, p.18),
Nesse aforismo, a metafísica aparece como um sonho que cria um segundo
mundo efetivo. No entanto, esta é uma má compreensão do sonho. Isto por um simples
motivo. Sonhar é desde sempre um processo criativo de imagens. Como afirma
Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, no sonho, “cada ser humano é um artista
consumado” (NT, 1, p.28). O sonho vige desde um acontecimento poético. Suas formas
não aparecem dadas, ou seja, não se confundem com qualquer idéia de um ser–em–si.
Sonhar é engendrar criativamente formas e configurações entitativas. É a partir desta
caracterização do sonho que se deve compreender a metafísica como uma má
compreensão do sonho. Se a metafísica consiste em dividir o real em dois planos
ontológicos qualitativamente distintos e explicar a dinâmica de realização de um deles
através do outro, um destes planos aparece irrevogavelmente como em-si, ou seja, como
absoluto. Na história do Ocidente este sempre foi considerado o plano supra-sensível.
Porquanto tal plano caracteriza-se por não se imiscuir com o plano deveniente, o supra-
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sensível é sempre um âmbito ontológico destituído de relações. Ele já está desde sempre
objetivamente dado no real. Justamente isto é negado por Nietzsche no acontecimento
da morte de Deus. Com a dissolução do supra-sensível, Nietzsche vislumbra a idéia de
que todo real reduz-se à dinâmica poética do sonho. Não há em-si, todo real vige desde
um processo criativo de engendramento de seus respectivos contornos ontológicos.
Destarte, a metafísica, por ser apologeta do em-si, é somente uma forma de má
compreensão do sonho. O em-si nada mais é que o resultado de um esquecimento
primário: o olvidamento do fato de que todo real dá-se desde um processo criativo. Isto
equivale a dizer que todo em-si é fruto de um sonho que se esqueceu de seu caráter
ontológico próprio. Com isto, as categorias metafísicas, que descrevem o modo de
realização do em-si, são, de fato, resultados de um processo criativo que se esqueceu do
A compreensão do sonho como metáfora explicativa do modo de estruturação do
todo dissolve a ilusão da crença no em-si e eleva a dignidade do caráter relacional do
real, que sempre fora desqualificado pela metafísica, à medida que a categoria da
relação sempre fora compreendida como um acidente (Cf. ARISTOTELES, Metafísica,
pp.153-155), já que necessitava da preexistência do em-si (ousía) para se determinar.
Com a morte de Deus, a palavra de ordem é relação. Todo real passa a ser vislumbrado
desde nexos relacionais não subsumíveis por quaisquer instâncias em-si. Isto equivale a
dizer que o real passa a reduzir-se às suas injunções superficiais ou fenomênicas,
portanto, mutáveis ou devenientes. Como, então, pensar a estruturação ontológica do
real com a assunção da relação à categoria suprema? Como existir em um mundo que
eleva o devir à estrutura primeva do todo?
Os últimos tópicos mostraram que o acontecimento da morte de Deus aparece, no
pensamento nietzschiano, como desafio para se pensar o real desde um outro horizonte
que o da metafísica. Se todo em-si nada mais é que uma má compreensão do sonho,
então, o que o real é não pode determinar-se fora de sua superfície fenomênica. Como
diz Nietzsche, no Prólogo de 1886 de A Gaia Ciência: “Esses gregos eram superficiais –
por profundidade!” (GC, “Prólogo”, p.15) O que Nietzsche diz dos gregos também
acomete o seu pensamento: o profundo, isto é, a essência do real dá-se como superfície.
À medida que Deus morre, o sentido do real aparece em suas injunções fenomênicas,
isto é, superficiais. Destarte, a dissolução do supra-sensível nada mais faz que incitar
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“uma nova aurora” (GC, §343, p.234) do pensamento. O acontecimento desta aurora dá-
se quando Nietzsche concebe a vontade de poder como princípio de constituição do
Porquanto o mundo se constitui através da dinâmica de realização do sonho e
justamente porque o ente caracteriza-se por ser o lugar onde as formas que delimitam o
real aparecem como resultantes de um processo criativo, a idéia de unidade metafísica
torna-se impensável segundo a ótica da tradição. Para a metafísica, a unidade
constitutiva dos entes é gerada e preservada pelo plano meta-empírico vez que o âmbito
dos fenômenos é o lugar ontológico da corrupção. Ora, se o mundo sensível é o lugar
onde a corrupção altera os estados ônticos, e se tal alteração contradiz a idéia de
identidade, então, o que faz o ente preservar sendo o ente que é não pode provir de sua
dimensão sensível. A forma substancial, a substância, a essência, o subjectum, etc., são
termos que respondem pela unidade do ente. Justamente isto se esvai com a morte de
Deus. Com isto, a pluralidade e o devir passam a vigorar como elementos necessários
na composição do mundo. Não são mais aspectos acidentais, mas pertencem à ordem da
“essência”. O que se considera aqui pluralidade não é a simples junção de elementos
diferenciados e atomisticamente divorciados. O real não é composto por elementos
substancializados diferenciados e justapostos. Com a dissolução do em-si, a pluralidade
se caracteriza, sobretudo pela relação dinâmica e conflitiva de princípios ontológicos de
configuração do mundo. É a isto que a expressão vontade de poder responde.
Com a expressão vontade de poder, Nietzsche não entende em princípio de onde
provém por emanação a pluralidade dos entes (MULLER-LAUTER, A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, pp.70-80). Vontade de poder não é o uno que funda o
múltiplo. Com a morte de Deus, não há uno que fundamenta o múltiplo. O que o real é
deve ser compreendido como resultado de um modo de estruturação de uma pluralidade
de elementos relacionados entre si. Como diz Nietzsche: “Toda unidade só é unidade
como organização e combinação: em nada diferente de como uma comunidade humana
é unidade”. Mas, o que tal organização organiza? Já foi dito que a organização é a
estruturação de elementos ontológicos. Se tais elementos são ontológicos, então, eles
respondem pela configuração da totalidade do ente. Sendo assim, a pluralidade
relacionada que compõe a textura ontológica do mundo refere-se antes de tudo a
princípios de estruturação poética [criativa] do todo. No embate que se dá na relação
constitutiva entre tais princípios de estruturação do real, a totalidade aparece em uma
determinada configuração. A unidade do mundo, portanto, é fruto da organização e
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interação entre princípios ontológicos de configuração ou plasmação do real. Disto se
evidencia a agonística ontológica nietzschiana. Devido à supressão do supra-sensível
(Deus) o múltiplo aparece inter-relacionado. Porém, justamente pela ausência de um
suporte meta-empírico cada configuração ou organização estrutural do todo não pode
arrogar para si a palavra final. Nenhuma configuração do real pode aparecer como
sendo a derradeira. Isto mostra que todos os princípios de configuração do real
relacionam-se entre si de modo conflitivo. Eis a agonística nietzschiana. É justamente
nesta agonística que se deve compreender o conceito de vontade de poder de Nietzsche.
No que tange a tal compreensão, dois fragmentos póstumos nos favorecem:
Se a essência [Wesen] mais íntima do ser [Seins] é vontade de poder, se prazer é todo crescimento de poder, e desprazer todo sentimento de não resistir e de não se tornar senhor: não podemos então postular prazer e desprazer como fatos cardeais? Vontade é possível sem ambas essas oscilações do sim e do não? Mas quem sente prazer?. Quem quer poder?. Pergunta absurda: se a essência mesma é vontade de poder e, conseqüentemente, sentir prazer e desprazer. Apesar disso: são necessárias as oposições, as resistências e, portanto, relativamente, as unidades que se apropriam de poder. (Vontade de Poder, §693, p.351).
Sempre de acordo com as resistências que uma força procura para se assenhorar delas, há de crescer a medida dos insucessos e fatalidades provocados por este fato: à medida que toda força só pode descarregar-se no que resiste, é necessário que em toda ação haja um ingrediente de desprazer. Todavia, esse desprazer age como estímulo da vida e fortalece a vontade de poder. (Vontade de Poder, §694, p.351)
Apesar de tais textos discutirem claramente a relação entre vontade de poder e
prazer, eles possibilitam adentrar no âmbito da agonística ontológica nietzschiana,
favorecendo um maior aprofundamento na problemática da semântica da vontade de
poder. Com o conceito de vontade de poder, o problema do prazer passa a ser um
problema secundário. A estruturação do todo não se reduz às sensações de prazer e
desprazer dos viventes. Contrariamente, a vontade de poder é o suposto ontológico
explicativo do prazer e desprazer. São modos de experiência da dinâmica agonística do
real. À medida que a pluralidade de princípios constitutivos do real se relaciona
conflitivamente entre si, “são necessárias as oposições, as resistências”. Cada princípio
de determinação do todo, por relacionar-se com outros princípios congêneres, encontra
sempre uma pluralidade de resistências. As resistências se manifestam pelo simples fato
de cada princípio ontológico de configuração do real encontrar outro princípio que se
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impõe com a mesma “intenção”, qual seja, configurar o real segundo seu modo de ser
próprio. Neste sentido, o que até aqui chamamos de princípio ontológico de
configuração do real nada mais é que um “princípio sintético”, posto que, nas suas
relações com outros princípios, seu objetivo é colocá-los à mercê de seu modo próprio
de ser. Devido à necessidade de auto-afirmação ante as resistências provindas dos
demais princípios sintéticos de configuração do todo, cada um destes princípios recebe
em Nietzsche o nome de força. Em outras palavras, Nietzsche denomina força os
princípios sintéticos de conformação do todo porque todos estes princípios necessitam
impor o seu modo próprio de plasmação dos entes, ao mesmo tempo que precisam
superar as resistências encontradas advindas da auto-afirmação de outras forças. Por
isso, afirmou Deleuze: “Qualquer força está, portanto, numa relação essencial com outra
força. O ser da força é o plural, seria propriamente absurdo pensar a força no singular”
(DELEUZE, Nietzsche e a filosofia, p.13).
Os textos acima mostram que prazer e desprazer são sinais de duas dinâmicas
possíveis de determinação da relação entre as forças. O prazer refere-se à apropriação de
resistências por parte de uma determinada força; já o desprazer aparece como o
contrário: a não resistência ou o não assenhoramento de outra força. Neste sentido, o
prazer e o desprazer apontam para um ingrediente inerente ao caráter agonístico
intrínseco às relações de força: o poder. Nas palavras de Nietzsche: “são necessárias as
oposições, as resistências e, portanto, relativamente, as unidades que se apropriam de poder.” Na semântica inerente ao embate entre as forças, o poder aparece com duplo
sentido. O primeiro sentido refere-se ao fato de que, na relação entre auto-afirmação da
força e resistência, cada princípio sintético de plasmação do todo deve exercer poder
para manifestar a si mesmo. O poder surge como a intensidade de auto-afirmação da
força ante a auto-afirmação de outras forças. Isto é o que Nietzsche constantemente
chama de quantum de poder (MÜLLER LAUTER, op. cit., p.74), a quantidade ou grau
de força, “cujo ser [wesen] consiste no fato de exercer poder sobre outras quantidades
de força” (Vontade de Poder, §689, p.350). Destarte, cada força exerce poder à medida
que gera efeitos no modo de atuação de outras forças, a partir de sua respectiva atuação.
Já o segundo sentido de poder na dinâmica de atuação das forças refere-se às unidades
relativas engendradas momentaneamente. Porquanto pertence à agonística ontológica
nietzschiana a incessante busca, por parte de cada força, de submissão das demais forças
ao modo próprio de realização de uma força somente, é inerente ao embate referido uma
relativa ou momentânea hierarquização ou estruturação das forças. Neste sentido, o
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embate entre as forças engendra uma unidade relativa das mesmas. O arranjo que daí
emerge não estanca o caráter conflitivo das forças. Pelo contrário, toda estruturação
hierárquica das forças está à mercê de novos elementos ontológicos que perpetuam o
embate ontológico que caracteriza o real. Neste sentido, o poder aparece como a
intensificação do vigor de atuação de uma determinada hierarquização das forças, à
medida que esta incorpora novos elementos ontológicos, submetendo-os à sua própria
dinâmica constitutiva. É neste sentido que Nietzsche fala de “unidades que se apropriam de poder”. Unidades são os arranjos ou hierarquizações de forças que
plasmam o real em uma certa configuração.
As informações precedentes nos possibilitaram compreender como se
caracterizam as forças que compõem o real. Não obstante isto, ainda não se patentizou
por que motivo a vontade de poder é, para Nietzsche, o “ser” do mundo. Se a inter-
relação das forças já deflagra exercícios de poder, por que Nietzsche fala de vontade de
poder? Não estaria ele caindo em algum tipo de subjetivismo, reduzindo o real à
vontade humana? Na citação acima, Nietzsche pergunta: “quem quer poder?”
Aparentemente, quem quer poder, na expressão vontade de poder, é a vontade. Mas, isto
não seria retroceder a algum tipo de em-si ? Como a vontade pode ser pensada fora do
universo subjetivo da modernidade, que tende a reduzi-la a uma faculdade do eu
A dissolução do supra-sensível, no acontecimento da morte de Deus, desterrou a
justificativa metafísica da existência. Se por metafísica Nietzsche compreende a
“dedução do condicionado a partir do incondicionado”, com a dissolução de sua força
de estruturação ontológica, o uno perde a capacidade de sustentar o múltiplo desde fora
de sua dinâmica de realização. Por isso, diz Nietzsche: “tudo o que simples é
meramente imaginário, não é ‘verdadeiro’. O que, entretanto, é real e verdadeiro, não é
único nem pode ser ao menos redutível a um” (Vontade de Poder, §536, p.281). Se a
simplicidade sempre foi atributo do uno, com a dissolução do em-si, toda simplicidade é
meramente um ens rationis. Neste sentido, o múltiplo passa a ser co-pertencente à
semântica essencial do real. Se os elementos que integram o múltiplo não são estanques,
já que isto acarretaria na gênese de uma nova substancialização entitativa, eles só se
definem através do modo como interagem com outros elementos congêneres. Como
visto, sem o em-si, o devir vigora sem obstáculos, o que leva a caracterizar a relação
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entre os elementos ontológicos que compõem o múltiplo como verdadeira agonística.
Disto emerge uma relação de poder entre tais elementos, o que levou a Nietzsche a
chamá-los de força. Cada força funciona como princípio sintético de conformação do
real. A síntese por ele almejada se perfaz à medida que integra as demais forças ao seu
modo de ser e, assim, configura a totalidade do real. A hierarquia deflagrada pelo
arranjo momentaneamente engendrado pela integração das forças torna patente a
dinâmica de síntese pertencente à agonística das forças. O que isto tem a ver com a
O último tópico encerrou-se com a questão: “Quem quer poder?” A resposta
imediata foi: a vontade. Com isso, parece que a vontade é o princípio que almeja o
poder como algo que lhe é extrínseco. Nesta compreensão, há a automática
substancialização da vontade, como se esta fora um em si de onde emerge o ímpeto
almejador de poder. Tal compreensão é pertinente. A vontade, desde a voluntas
medieval, quase sempre foi considerada um princípio subjetivo fomentador de diversas
atividades de um tipo específico de ente: o homem. Neste sentido, em consonância com
a racionalidade, a vontade foi compreendida como um agente de conexão entre o
homem e os entes ao seu redor. Através da vontade, o homem empreende ações que
viabilizam a alteração das configurações do real. Isto equivale a dizer que a vontade
funciona como princípio causal das ações humanas e como agente de articulação do
caminho necessário para que cada ação alcance sua meta. (Cf. CASANOVA, O instante
Se por vontade de poder compreende-se um princípio subjetivo mobilizador das
ações humanas, então há a repetição do quadro metafísico contra o qual Nietzsche
pensa. A compreensão metafísica da vontade, enquanto princípio subjetivo mobilizador
das ações humanas, contrapõe homem e totalidade dos entes. Dizer “eu quero” é
escolher o fim e os meios que consigam intervir no quadro conjuntural dos entes, sendo
estes o conjunto de objetos dados no mundo. Com isto, a metafísica pressupõe a
autonomia da subjetividade humana e da vontade que lhe é inerente. Isto equivale a
dizer que a vontade é o princípio relacional que ata entes ontologicamente desquitados.
Por serem desquitados, tanto o homem quanto os entes que lhe circundam aparecem
desde a ótica do em-si. Eles são o que são a despeito das relações que instauram. Toda
relação vigora como um acidente. Se Nietzsche aceitasse tal compreensão da vontade,
não estaria ele levando a sério o acontecimento da morte de Deus. O mesmo ocorreria
se Nietzsche compreendesse a vontade como núcleo do mundo, a la Schopenhauer ou
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Nietzsche e a semântica da vontade de poder
como o absoluto do romantismo alemão. Qualquer idéia de vontade como instância
ontológica que se retrai às manifestações ônticas do real, já indica a perpetuação da
concepção metafísica do em-si, portanto, a preservação de Deus.
A deflagração da morte de Deus necessariamente leva Nietzsche a ressignificar o
conceito de vontade. Vontade não mais se relaciona com o em-si, mas acontece em
plena sintonia com a semântica das forças, ou seja, vontade relaciona-se com a
superfície fenomênica e com o múltiplo que a compõe. Disto se depreende que
Nietzsche des-subjetiva a vontade e a compreende como “acontecimento cósmico”, isto
é, estruturador do mundo. Por isso, afirma Nietzsche em aforismo já mencionado: “a
essência [Wesen] mais íntima do ser [Seins] é vontade de poder”. Ora, se a unidade do
mundo é dada por uma hierarquização momentânea – portanto, relativa – das forças,
como falar de vontade de poder no singular? (MÜLER-LAUTER, op.cit., pp.81-98). No
que tange a esta questão, um fragmento póstumo nos permite adentrar em sua
problemática e encontrar uma pista para sua solução: “não há vontade alguma: há
pontuações de vontade, que constantemente aumentam o seu poder ou o perdem”
(Vontade de Poder, §715, p.361). A vontade não existe. Existem pontuações volitivas.
Por quê? Justamente pelo fato de que o mundo segundo Nietzsche é uma arena onde
forças antagônicas se impõem simultaneamente com o intuito primário de plasmarem o
real segundo seu respectivo modo de ser. Como nada se encontra para além desta ação
agonística, não há substratos metafísicos que fundamentem as forças. Cada força
emerge desde si mesma e afirma sua particularidade constitutiva. Ser o motor de sua
própria ação é o que há de próprio em cada força. Justamente isto é chamado por
Nietzsche de “pontuações volitivas”. Tal expressão mostra que o conceito de vontade se
patentiza no modo de ação de cada força. Ela aparece pontualmente, ou seja,
singularmente em seu modo de auto-afirmação, e não como sujeito metafísico, existente
por detrás do campo fenomênico. Mas, por que Nietzsche escolheu o nome vontade? A
resposta é: porque a força vigora como um ímpeto, já que o princípio que a anima
encontra-se nela mesma. Esta espontaneidade ontológica é o que leva Nietzsche a
compreender a dinâmica de realização da força como sendo vontade. Destarte, a
vontade descreve o princípio ontológico que faz de cada força algo deveniente e auto-
afirmativo. É justamente neste cenário que Nietzsche constrói seu conceito de vontade
Por vontade de poder Nietzsche compreende primeiramente o modo de ser da
força. Como já dito, a força não aspira por poder como algo que lhe é extrínseco. Da
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mesma forma, o poder com o qual se relaciona a vontade não é meramente a capacidade
controle de uma determinada região dos entes. É que os entes não são “o lugar” da
aplicação da força. Antes disso, os entes já são aquilo que aparece desde um modo de
vigência da integração das forças. Destarte, a vontade de poder, não uma subespécie da
vontade. Se por vontade se descreve, sobretudo, a espontaneidade que caracteriza o
movimento auto-afirmador da força e se toda auto-afirmação vigora ante as resistências
apresentadas pela mesma dinâmica auto-afirmadora das demais forças, então, resulta
deste embate, como já assinalado, um componente de poder. O poder se refere ao
quanto de resistência uma determinada força pode resistir, ao mesmo tempo que se
refere ao quanto uma força pode impor seu modo de plasmação do real. Por vontade de
poder, então, Nietzsche compreende, primeiramente, o caráter espontâneo, auto-
afirmativo e resistente da força no embate com outras forças na composição do real.
Destarte, não há vontade de poder, mas vontades de poder que sempiternamente
Não obstante a vontade de poder ser o modo próprio de ser da força, esta se
organiza temporariamente com outras forças em uma hierarquia. Tal hierarquia não
emerge do nada. Porquanto cada força impõe um direcionamento na relação com outras
forças, da relação entre estas surge um direcionamento globalizante, ou seja, todas as
forças são estruturadas desde a supremacia de uma força em específico. Com isto,
aparece um arranjo específico e o real é plasmado em uma dada configuração. Visto
desde o arranjo de forças, a vontade não mais significa o caráter espontâneo que faz de
cada força um ímpeto que se afirma ante o embate com outras forças. Como diz
Casanova: “Vontade é aqui o nome para o despontar de um imperativo a partir de um tal
direcionamento”(CASANOVA, Interpretação enquanto princípio de constituição do mundo, p.43). Ora, se a vontade aparece, em segundo momento, como o direcionamento
de um conjunto de forças a partir do comando de uma determinada força, a vontade será
vontade de poder, à medida que o arranjo construído só o é desde injunções de poder, já
que o imperativo nele expresso nada mais é que a vitória de uma determinada força
À medida que cada arranjo de forças não pode arrogar para si o caráter de ser
derradeiro, cada conformação do real, por conseguinte, não pode ser considerada última.
Isto porque, mesmo com uma certa hierarquização das forças, estas não deixam de
tentar impor o seu modo de ser às demais. Por isso, o devir nunca pode ser subsumido
por um determinado arranjo de forças. Por outro lado, a dinâmica de realização da
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Nietzsche e a semântica da vontade de poder
vontade de poder nunca se realiza fora de qualquer arranjo específico das forças. Pensar
a agonística das forças fora de toda e qualquer estruturação entre elas é uma hipótese
somente. Destarte, o conceito de vontade de poder abarca o binômio metafísico ser-
devir, sem incorrer no modo de compreensão da metafísica, que cinde e opõe estes
pólos de relação. Aliás, Nietzsche mesmo certa feita afirmou: “Imprimir no devir o
caráter de ser – eis a mais elevada vontade de poder” (Vontade de Poder, §617, p.316).
É que na vontade de poder toda hierarquização das forças é o equivalente pós-
metafísico do conceito de ser. No entanto, tal estruturação é relativa e está sempre
aberta a novas configurações das forças, o que equivale a dizer que está disposta à
experiência do devir. Neste sentido, o devir não aparece como mera alteração de estados
dos entes, como se existisse entes dados que, com o passar do tempo, iriam sendo
modificados em seus aspectos essenciais. Devir, agora, fala sobretudo do caráter
conflitivo inerente ao embate entre as forças e às reestruturações que ocorrem na
reorganização das forças. Ser e devir, portanto, são aspectos intrínsecos à dinâmica de
As informações precedentes mostraram que a assunção do acontecimento da
morte de Deus exigiu a concepção de um novo princípio ontológico explicativo do
modo de realização da totalidade do ente. A vontade de poder é justamente este novo
princípio. Ela responde pela superação do horizonte metafísico de compreensão do real,
vez que este caracteriza-se por pensar binariamente o todo, cindido o real em dois
matizes ontológicos e opondo estes setores, ao buscar justificar um deles através do
outro. O âmbito justificador do real sempre foi considerado pela metafísica como
incondicionado ou em-si. Justamente porque a vontade de poder diz respeito ao modo
como a pluralidade de forças que compõem a superfície se relaciona entre si, buscando
arranjos momentâneos entre si e reconfigurando-se constantemente, ser e devir passam
a referir-se a dois momentos distintos na realização da vontade de poder.
Com essas considerações, parece que Nietzsche valoriza, com a vontade de
poder, o caráter deveniente do real. A hierarquia momentânea das forças seria somente
um momento necessário para a reconfiguração do todo, isto é, para a ocorrência do
devir. Este seria compreendido como o caráter auto-superador intrínseco à vontade de
poder. Nas palavras de Zaratustra: “E este segredo a própria vida me confiou: ‘Vê’,
disse,’eu sou aquilo que deve sempre superar a si mesmo” (ZA, II, “Do superar a si
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mesmo”, p.145). Mas, como seria uma existência que sempre se reconfigura e altera a
cada vez o princípio sintetizador do todo? Será que Nietzsche é, de fato, apologeta de
um heraclitismo em que tudo se dissolve constantemente e nada permanece? Uma
sentença de Nietzsche ajuda-nos a responder isto: “A vontade de poder não é um ser,
não é um devir, mas sim um páthos – esse é o fato mais elementar do qual,
primeiramente, resulta um devir, um atuar.” (Vontade de Poder, §635, p. 325). Esta
afirmação assinala que ser e devir, na semântica da vontade de poder, não são
originários. Originário é o páthos desde o qual ser e devir são possíveis. A questão é:
que é o páthos? Obviamente, nada de subjetivo; nenhuma moção subjetiva. Páthos é o
termo que responde, na vontade de poder, pelo traço que permite a ocorrência de uma
estabilização na hierarquização das forças (ser) e pelas modificações necessárias no
arranjo já efetivado (devir). Sem este traço (páthos) não há sentido em se falar de
estabilização ou metamorfose. É a partir do páthos que cada efetivo (orgânico ou
inorgânico) sabe como e o que mudar e como e o que preservar para ser o que ou quem
é. Por isso, o páthos fala daquilo que responde pela gênese e perpetuação da
singularidade do efetivo, ou seja, o páthos é o nome do próprio.
A vontade de poder é, sobretudo, o nome para designar a singularidade do ente
sem lançar mão de qualquer suporte metafísico para o mesmo. Ela responde pela
realização do singular dentro de uma dinâmica que assume o devir e o ser como
momentos necessários de si mesma. Com isto, a vontade de poder não diz respeito a um
devir sem travas como sentido dos fenômenos, nem inverte a metafísica gerando a
subsunção do ser através do devir. Em última instância, a vontade de poder diz respeito
ao próprio, ou seja, à singularidade de um ente que conquista a si mesmo ao abrir-se
sempiternamente ao jogo conflitivo e deveniente entre as forças e promove
hierarquizações que favoreçam a conquista de si. A tal conquista Nietzsche destinou
dois nomes: “apropriação e a incorporação” (Vontade de Poder, §656, p. 331).
Apropriar e incorporar significam: colocar o que é alheio a serviço da dinâmica de
realização do próprio. Assim, a vontade de poder aparece em seu sentido áureo, qual
seja, a vontade de poder mostra-se como “um querer-dominar, um formar, configurar e
transfigurar, até que finalmente o dominado tenha passado inteiramente para o poder do
opressor e o tenha aumentado” (Ibidem). O sentido da vontade de poder é intensificar o
próprio e o poder de singularização do existente. Não se trata, portanto, de vir-a-ser-
outro a cada vez, mas de vir-a-ser mais o próprio que já se é.
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Nietzsche e a semântica da vontade de poder
Porquanto a vontade de poder é, em Nietzsche, a resposta conceitual para as
problemáticas intrínsecas ao acontecimento da morte de Deus, ela resolve um problema
difícil: como experimentar alguma estabilidade ontológica com a supressão do supra-
sensível? A resposta de Nietzsche é: conquistando a cada vez o próprio, ao assumir o
devir e o ser como elementos sempre necessários na realização desta tarefa. O desafio é
assumir o próprio desde o qual todo devir aparece como um meio para intensificação de
si e toda estabilidade (ser) como um momento não obstaculizador da dinâmica de
realização da existência. Desta feita, Nietzsche não é, em sentido originário, o pensador do devir, tampouco o pensador da diferença; mas, sobretudo, o pensador do singular, o apologeta do próprio. A grande lição da vontade de poder não é ter de ser múltiplo ou
não querer se cristalizar em nada. A grande lição da vontade de poder é ousar viver o
desafio de vir-a-ser o (próprio) que se é.
Referências Bibliográficas:
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MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad.
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_____. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
_____. Para além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
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